Sexta-feira, 28 de Agosto de 2009
O patrão Joaquim Lopes – 1798-1890.

«UM GOLFINHO A BRINCAR POR ENTRE AS ONDAS?

 
Filho de pescador, nasceste nos finais do sec. XVIII, à beira-mar, no Algarve, em Olhão. Vais à escola, aprendes a ler, a escrever e a contar, mas aos dez anos já estás a ajudar o teu pai na faina da pesca e logo começas a tratar o mar por tu. Trepas ao mastro, ferras a vela, lanças e puxas as redes, limpas e lavas o convés, manejas remo e croque, mas o que mais impressiona os outros pescadores é a tua assombrosa forma de nadar, pareces um golfinho a brincar por entre as ondas.
Na tua família o dinheiro é escasso. Por isso, aos 19 anos, com a benção dos teus pais, emigras para Gibraltar, em busca de melhor sorte. Mas não suportas o novo ambiente e, 11 meses depois, tornas a casa. Melhor dizendo: tornas à cabana dos teus pais.
Mais uns mesitos em Quarteira (Algarve) e partes para Lisboa. Dali vais para Paço de Arcos, frente à foz do Tejo, onde vivem muitos algarvios. Seduz-te o choque permanente entre as águas fluviais a abrirem passagem para o mar alto e as do oceano a quererem assaltar o leito do rio...
  
            DE PAÇO D'ARCOS AO BUGIO
             
Na barra do Tejo há cachopos que afloram à superfície. Próximo da margem esquerda, há também um ilhéu rochoso-arenoso sobre o qual foi levantada a Torre de S. Lourenço da Cabeça Seca. Mas como o nome do ilhéu era Bugio, a fortificação passou a ser conhecida como Forte do Bugio. Sua função: guardar a entrada do Tejo. Mas dali nunca foi e jamais será disparado um tiro de ataque ou defesa, só de alarme. O Bugio acabará por ser convertido apenas em farol. Mas em 1820, quando tu arribas, no Bugio há uma permanente guarnição de 50 militares. E a única ligação que eles têm com terra firme, é a falua que faz a carreira Paço de Arcos - Bugio, ida e volta. Nessa falua vais alistar-te como remador. A soldada é apenas 12 vinténs, mal dá para comer. É por isso que arranjas trabalho complementar em canoas de pesca da barra. Pouco tempo depois consegues adquirir a tua própria canoa. Em consequência, começas a viver mais desafogado.
Durante as travessias da falua para o Bugio e da tua faina de pesca, observas atentamente as variações, quer de sentido, quer de intensidade, das correntes na barra, desde a preia-mar à baixa-mar. Observações mais do que vantajosas para aquela que virá a ser a tua vida.
 
            PRIMEIROS SALVAMENTOS
             
Junto a Paço de Arcos o pequeno rio Oeiras desagua em plena foz do Tejo. Em Julho de 1823 um homem, com o filho às costas, tenta atravessar a vau o rio Oeiras. Perde o pé e ambos são arrastados para longe. Forte é a correnteza e todos temem acudir. Tu não temes, varar e domar as águas que bem conheces, é contigo. Mergulhas, salvas a criança e depois o pai.
Pouco tempo depois, no Forte do Bugio, repetes a proeza quando te atiras à água para salvar um cabo de Artilharia que tinha sido arrastado por uma vaga.
Em Paço de Arcos diz-se que tu fizeste jorrar generosidade e coragem desde Olhão até à  foz do Tejo...
 
            CASAMENTO
             
Em 1824 casas na Igreja de Oeiras (povoação ao lado de Paço de Arcos) com Maria do Rosário, tua prima em 3.º grau, também ela natural de Olhão e tua prometida desde os teus 18 ou 19 anos. Maria do Rosário dar-te-á sete filhos, duas raparigas e cinco rapazes. Dois deles, Quirino António e Carlos Augusto, também irão distinguir-se, tal como tu, no socorro aos náufragos.
 
            O NOVO PATRÃO DA FALUA
             
Em 1828, outro salvamento que impressiona o povo é o do Sargento Francisco de Sales, também ele envolvido e arrastado por uma vaga quando se preparava para desembarcar no Bugio. Ele a ser arrastado e tu a mergulhares atrás dele, salvação! O teu entendimento das manhas da foz e a tua valentia provocam a seguinte situação: em 1833, numa crise de cólera, morre o patrão (comandante) da falua do Bugio. É tradição que assuma a vaga o remador mais antigo. Mas desta vez todos os remadores pedem ao governador do Forte do Bugio que sejas tu o nomeado, apesar de seres o mais recente. E isso - argumentam eles -  porque o patrão deve ser o mais hábil e o mais leal dos marinheiros. O governador não hesita, nomeia-te, passas a ser o Patrão Lopes, com direito a morar na Rua Direita de Paço de Arcos, junto àquele que virá a ser o Instituto de Socorros a Náufragos.
 
            HOWARD PRIMOROSE
 
Em 1856 o Patrão Lopes socorre a Howard Primorose, escuna inglesa que naufraga. Os Fortes de S. Julião e do Bugio disparam tiros de alarme, a escuna inglesa Howard Primrose encalhara nos baixios da barra. Tu, mais o teu filho Quirino e uns tantos voluntários, logo saltam para a falua. Seis horas a remar e não consegues aproximar-te da escuna, a falua é muito pesada para manobrar por  entre baixios. A essa conclusão já tinham chegado os tripulantes de um escaler da Alfândega e de um vapor de guerra. Regressas a Paço de Arcos e vais buscar a tua canoa de pesca, embarcação bem mais ligeira. Mais 6 horas e a escuna, sob o impacto das vagas, já ameaça partir-se ao meio. Mas, finalmente, vocês conseguem resgatar o comandante e mais cinco marinheiros. Apenas morreu um que, apavorado com o navio a destroçar-se, se atirara precipitadamente à água.
Desembarcas os sobreviventes na estação fluvial de Belém e contas as peripécias  ao Comandante da corveta Oito de Julho. Também lhe passas os nomes dos teus camaradas salva-vidas.
Pela tua bravura o governo britânico atribui-te a Medalha de Prata da Rainha Vitória e à tua marinhagem dá umas libras de ouro para aquecer os bolsos...
E as autoridades portuguesas? Não piam, ignoram o salvamento... Circunstância que provoca comentários da imprensa. É então que um oficial do Bugio, metido a esperto, se apresenta como o herói do feito, pois fora ele quem avistara a escuna encalhada e dera sinal de alarme. História logo revelada pelo Jornal do Comércio. Em consequência, El-rei D. Pedro V atribui ao espertalhão a Torre e Espada, a mais importante condecoração portuguesa. Mas passados dois anos, o mesmo Jornal do Comércio repõe a verdade publicando os relatos da tripulação da escuna inglesa e do Comandante da corveta portuguesa Oito de Julho. Por forte pressão da imprensa, é-te por fim atribuída a medalha de prata de D. Pedro e D. Maria.
Também é organizada uma subscrição pública para compensar financeiramente o teu heroísmo. Mas tu recusas, tu devolves, tu refilas:
- Quem tem que me remunerar é o Governo, não é o Povo, porque eu não dependo nem quero depender da caridade pública...
 
            SALVA VIDAS DE BELÉM PARA PAÇO D'ARCOS
             
Em 1856 o Governo manda instalar um salva-vidas na estação fluvial de Belém. Embarcação a remos, leve porém robusta, muito mais do que a tua canoa de pesca. Contudo, durante os naufrágios na barra, continuas a ser o primeiro a chegar! Compreende-se: estás melhor localizado...
Em Fevereiro de 1858 a escuna inglesa British Queen encalha junto ao Bugio. Dada a violência do mar, com a tua canoa de pesca mal consegues aproximar-te. Com muita dificuldade salvas apenas o Comandante e um cãozinho que por ali andava a nadar aflito por entre as vagas. A propósito, dizes para os teus marinheiros:
- Aquele ali também tem vida e é o melhor amigo do homem...
Recolhes o cão e regressas a terra juntamente com o Comandante da British Queen.
Apesar dos fracos resultados do salvamento, a Coroa inglesa agracia-te com a Medalha de Ouro de Mérito Humanitário. Toda a tua tripulação é também agraciada com a mesma medalha, mas de prata.
Finalmente, em 1859, o Governo transfere o salva-vidas de Belém para Paço de Arcos e coloca-o sob as tuas ordens. Resmungas: “mais vale tarde do que nunca”.
 
            EL REI D. LUÍS
             
Salvamentos e mais salvamentos. Entre eles aponto:
Em 1859 salvas o Comandante e mais dois tripulantes do Stephanie, navio francês também encalhado no Bugio. És condecorado com a “Medalha de Dedicação e Mérito” e também com a “Medalha de Valor e Filantropia”, ambas francesas.
A 19 de Fevereiro de1864 salvas grande parte da tripulação do bergantim espanhol Achiles. A Espanha atribui-te a medalha de ouro “Distinção Humanitária”.
Três dias depois, a 22 de Fevereiro, salvas toda a tripulação do iate português Almirante. Mais uma vez o Governo português nem sequer pia. Mas a 24 de Fevereiro El-rei D. Luís bate à porta da tua casa humilde. Toda a tua família e toda a população de Paço de Arcos ficam em polvorosa.
O monarca pergunta e tu vais contando os teus feitos, rude linguagem de lobo do mar, porém sincera até mais não poder. El-rei convida-te a visitá-lo no paço de Caxias, povoação vizinha de Paço de Arcos, e onde pousava transitoriamente. Aceitas o convite e no dia seguinte estás do Paço de Caxias.
Entras, El-rei abraça-te e coloca-te ao pescoço o colar da Ordem da Torre e Espada, a mais alta condecoração portuguesa. E tu, rijo homem do mar, não tens vergonha de, comovido, soluçar contra o peito do teu monarca.
Mas uma coisa são as gloriosas condecorações, outra é a penúria em que tu vives. O Governo não se mexe, não quer saber do que está a acontecer em Paço de Arcos. Porém o Marquês Sá da Bandeira, deputado da Oposição, dispara o seu discurso como se fosse um arcabuz e o Governo, finalmente, abre os olhos: com a aprovação prévia do Parlamento, atribui-te uma pensão anual de 240 mil réis, transmissível à tua mulher e filhas, em caso de passamento teu. Se tu salvaste muitos da fúria das águas, Sá da Bandeira salvou-te da fúria da miséria... 
As coisas começam a compor-se: em 1866 és nomeado mestre da Armada e graduado segundo-tenente, em diploma assinado por El-rei e pelo Visconde da Praia Grande.
 
            BALANÇO
             
Em 1882, com 85 anos e já tolhido das pernas, mandas que te amarrem ao leme e ainda tentas socorrer o Lucy, lugre francês. Felizmente o teu filho Quirino António, que estava fora de Paço de Arcos, ouviu o disparo do Forte de S. Julião da Barra e acorre a tempo de te obrigar a passar para a falua e é ele quem, no salva-vidas, efectua o salvamento. 
Tomás Ribeiro, o poeta, dedica-te uma quadra:
 
Quando o Patrão já velho,
ao pé do mar assoma,
só de o encarar, o oceano
se atemoriza e doma.
 
Em 1885 o poeta e o Marquês da Fronteira, teus amigos, mandam inscrever esses versos numa lápide que é afixada no frontispício da tua casa.
Fazes o balanço da tua vida, dizes:
- Se não me falham as contas, nem a memória, socorri mais de 53 navios e salvei mais de 300 vidas.
 
            ULTIMATUM
             
Em 1890, Ultimatum da Inglaterra a Portugal, por causa dos territórios africanos que as duas nações disputam. Tens 92 anos mas ainda a necessária lucidez e fibra para devolver ao governo inglês as condecorações com que ele te agraciou. E para convencer os teus filhos a seguirem o teu exemplo.
Morres a 21 de Dezembro do mesmo ano. Consternação e luto em Paço de Arcos, as lojas com as portas fechadas, as embarcações a rumarem para a praia com bandeiras a meia-haste. A Marinha organiza o teu funeral, barcos de guerra a escoltarem o teu corpo até ao Arsenal, junto ao Terreiro do Paço, em Lisboa. No cortejo, por decisão de El-rei D. Carlos, também se integra o iate Amélia, assim chamado em homenagem à rainha sua esposa. Finalmente és sepultado no cemitério de Oeiras.
Quando hoje atravesso Paço de Arcos e vejo o teu busto de bronze no parque fronteiro ao mar, e depois o Instituto de Socorros a Náufragos que tu inspiraste e a Rainha D. Amélia concretizou, tenho sempre a sensação, não sei porquê, que ando contigo a remar rumo ao Bugio.»
 
por Fernando Correia da Silva – in Vidas Lusófonas.
 
Agradeço ao amigo Octávio Oliveira, da Damaia, a referência que me passou sobre o patrão Joaquim Lopes. Essa referência baseou-se na última foto deste artigo, de sua autoria, que mostra o estado actual do monumento a ele eregido na sua terra natal, Olhão. A foto é de 14 de Agosto passado.
Impressiona-me por vezes o significado da palavra “Governo”. Seja ele central ou local, impressiona-me como estandartes do passado que suportam a identidade dos povos e das terras, são por vezes deixados chegar a este estado vergonhoso. Serão uma reflexão governativa? É que quando se entra numa casa imunda, o primeiro pensamento vai para quem lá vive.
Não basta todas as letras terem “voado”, como também os adornos florais fantasma ou um conspurcado chão sabemos bem com quê.
Curiosamente, já o Governo no tempo do patrão Lopes fazia vista grossa à simples e humilde atitude de um homem, que apenas cometia o nobre “crime” de salvar outros homens. Há alturas da vida em que os homens deixam de ter nacionalidade, posição social por nascença ou demais estigmas. Essa deveria ser uma das máximas vindas de quem nos governa.
 
Outro artigo sobre o patrão Joaquim Lopes.


publicado por cachinare às 08:09
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8 comentários:
De jaime pião a 28 de Agosto de 2009 às 10:35
Patrão Lopes ,mas que histórias passadas e que grande herói foi este homem !
Nunca tal tinha ouvido contar ,quantas vidas este homem tirou das fúrias do mar ,quantas vezes pôs a vida dele e de outros em risco e já então os Governantes desse tempo tardavam em reconhecer os grandes heroísmos deste e doutros homens que bem mereciam ser bem galardoados !
Mas do mal o menos o Patrão Lopes mesmo em vivo foi Galardoado ao passo que aqui em Vila do Conde se esquecem dos feitos dos nossos valentes homens que em circunstâncias idênticas de salvamentos de heroísmo e de tantos anos passados nas pescas do bacalhau pelos bancos da Terra Nova e Groenlândia ,e muitos dos pescadores de Caxinas que ficaram sepultados em cemitérios de Santo Jonas e Groenlândia e ainda aqueles que o mar gelado tragou nas suas profundezas , mas desses não reza a história !
cumprimentos Jaime Pontes


De Anónimo a 4 de Novembro de 2017 às 22:49
é com orgulho e admiração que leio e recordo este homem, senhor meu tetravô, a fibra a dignidade e o respeito pelo outro, homem humilde, mas que tinha como amigos gentes influentes à altura, que com ele gostavam de partilhar amenas conversas. quem nos tempos de hoje, devolvia condecorações atribuídas com todo o mérito, quando um outro país humilhou o seu próprio país, só um homem com uma dignidade do tamanho do mundo e um verdadeiro patriota, é o orgulho de toda uma família, o orgulho de Paço de Arcos e deveria ser o orgulho de Portugal.


De Maria José Lopes a 6 de Maio de 2020 às 14:29
Boa tarde,
Partilho também do orgulho de ser 5ª neta do Patrão Lopes, cresci com a figura dele sempre presente, porque o meu pai, seu tetraneto, tinha um orgulho enorme na sua vida e obra. Em 1999 tive a sorte de receber do Sr. Rogério de Oliveira Gonçalves, um exemplar do livro O Patrão Lopes - de Paço de Arcos à Eternidade, da sua autoria, e, edição limitada do Município de Oeiras, que me permitiu conhecer o Homem por detrás do nome.
Não sei se existe algum grupo da família que mantenha contacto, mas era de facto interessante conhecer os seus descendentes.




De Ana Sofia Lopes a 10 de Dezembro de 2023 às 00:44
Olá nasci a ouvir as histórias do meu tetravo. Gostava imenso de conhecer mais e melhor a minha linhagem. Por favor pedia que entrassem em contato comigo. 966230933


De António Paula Brito de Pina a 28 de Fevereiro de 2019 às 14:24
O outro artigo referido no fianl pelo autor mudou de endereço e agora está em http://www.olhaocubista.pt/Personalidades/patr%C3%A3o_joaquim_lopes.htm


De cachinare a 28 de Fevereiro de 2019 às 19:23
Caro António Pina, obrigado pela dica. O link foi renovado.
Cumprimentos.


De Fernanda Durão a 15 de Janeiro de 2024 às 15:01
Parabéns pelo artigo!
Não conhecia!


De Anónimo a 20 de Março de 2024 às 21:32
boa noite, poderiam me informar qual a data do painel de azulejos que se encontra na capitania de Viana do Castelo? ou a sua inauguração?
Obrigada desde já
Lígia Cunha - Viana do Castelo



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