Mais conhecido pelo “naufrágio” no singular, a verdade é que foram vários os barcos que naufragaram naquele dia de temporal, a saber pelo menos oito, três da Afurada e cinco da Póvoa de Varzim.
De seguida fica o relato de Vasques Calafate, grande defensor das causas dos pescadores até à sua morte em 1963. Cometi a liberdade de transcrever do blog GARATUJANDO a parte final deste artigo.
«Nesse 27 de Fevereiro de 1892, um vendaval forte açoitou, de repente, a nossa costa e, em poucas horas, convertia o mar num cemitério de náufragos, ao longo do litoral.
Só da Póvoa morreram afogados uns 70 homens. Foi, de resto, a terra mais vitimada da beira-mar, já por ser, então, o centro piscatório mais populoso do País, já porque os seus barcos andavam muito arredios, segundo o costume laborioso e aventureiro das respectivas companhas.
Umas 43 lanchas poveiras, com um total de cerca de mil tripulantes, tinham largado, na véspera, para o “Mar da Cartola”, entre Ovar e Aveiro, à pesca da pescada, por lugares de 65 braças de fundo. Mais terrenhos (todavia a umas 10 milhas de longitude), estacionavam os rasqueiros, para as bandas da “Farilhuda”, pedra submarina que fica no enfiamento de um monte de Valongo, denominado pelos pescadores “O Escarvado”, em virtude do aspecto calvo do seu cabeço, e que lhes serve de marca orientadora, naquelas alturas.
Cento e noventa homens seriam os dos rasqueiros. Isto sem falar nos poveiros que mareavam por outros sítios, à cata de peixe nesse dia fatídico. Mas os seus maiores ajuntamentos eram, de facto, naquelas paragens mencionadas, porque ali se apinhavam, por essa ocasião, cardumes de qualidade, que as redes da Póvoa apanhavam em abundância e se vendiam, em muitos portos, por bom preço. A anesa ia correndo menos-mal, e eles aproveitavam essa maré para se desforrarem da miséria que passavam, nas largas temporadas de descanso forçado, a que os obrigava a invernia.
Como vínhamos dizendo, andavam nessas viagens, para as lonjuras de Aveiro, as embarcações poveiras de maior porte, quando sucedeu a calamidade do 27 de Fevereiro, que encheu de luto numerosas famílias e de horror a Nação inteira.
Tinham partido para lá, no dia 26, com tempo escorreito tocadas por vento lés---nordeste, navegando de feição, o pano amurado à escota larga. Nada deixava prever a tempestade que, no dia seguinte, havia de rebentar tão violenta e pavorosa, semeando a morte.
Ainda em 27, de manhã, na Póvoa, não se via motivo para futura desgraças. É verdade que o vento andou ali a querer rodar para o sul, sopra deste lado, sopra daquele, em rabanadas indecisas, a fazer negaças.
Turvaram-se um pouco os céus e chegaram a cair alguns chuviscos, que mal humedeceram o pó do chão. Também as águas, lá fora, apresentaram certo “rebolo”, certo boleio, de mau agoiro o que levou alguns velhos arrais a temerem mudança de tempo. O seu instinto de marinheiros, apurado pela experiência, pressentia nos ares borrasca iminente. Apesar disso, afoitaram-se ao mar, não fosse a “canalha nova” tomar por medo a sua prudência, uma vez que os presságios só podiam ser, por enquanto, muito vagos. Endurecidos pelos perigos e briosos de seu natural, não hesitaram: “Há-de ser o que Deus quiser!” E abalaram para o mar alto, firmes na sua fé, animados pela sua coragem heróica, que lhes vinha de nascença.
Já no largo, porém, os sinais de mau tempo carregaram-se. Nuvens ensombradas entravam a afrontar do Sul, onde se fixara o vento. A concha do céu a cobrir-se de “ramagens”, dava indícios de grossa tormenta em gestação. O tempo, como o outro que diz, estava a prantear-se feio.
O “tio Olaia”, que de tudo isto se apercebeu, porque era entendido nestes “jeitos dos astros”, não esteve com meias medidas: desandou lesto para terra, a mais a sua gente, antes que se fizesse tarde. Foi o primeiro a chegar à “Ribeira”, ainda os outros barcos não se enxergavam na volta. Não se via que viessem arribados.
Ora, foi o fim do mundo! As mulheres da acompanha, todas num levante, injuriaram-nos à boca cheia, e, com punhados de areia contra a cara, gritavam-lhes que tornassem para trás, que tivessem vergonha, os medricas, e fossem buscar as redes, que se ficaram a melar na água. Aperrearam-nos. E negavam-se a alar o barco, com riscos de o deixarem ali “enxofrado” na praia.
Afinal o Tio Olaia tinha razão. Os factos demonstraram-no depois; mas, antes disso, também os outros barcos debandaram para Leixões, por já não poderem meter-se à barra da Póvoa.
Foi o mestre Zé Benta quem deu o alarme de perigo à vista.
Livraram-se por um triz! Daí a instantes, desencadeava-se a tormenta com toda a fúria, não dando tempo aos barcos, que se encontravam ao longe, de se abrigarem nos portos mais próximos. Eram atirados para o Norte pela força do vento e a correnteza das águas, desarvorados. Iam por aí adiante, sem comando, de todo extraviados e atordoados. O leme não havia ter mão nele, ao querer rumar de través para lugar de salvamento. O mar, todo ele, parecia ferver em cachão. Onde menos se esperava, chocavam-se as ondas e os barcos afundavam-se amiúdo naquela marulhada. Para mais, uma serração forte não lhes deixava ver para onde iam. Passavam uns pelos outros como fantasmas fugidios, quando não se abalroavam e uns aos outros pediam socorro impossível, em altos gritos. Ao largo da Póvoa, o mestre Praga, que já vinha à ventura das alturas de Aveiro, ainda tentou , aproveitando uma pequena “estanhadela” (mar liso), salvar os homens da lancha “Senhora da Guia” que encontrou a boiarem sobre as redes, agarrados à madeira; mas uma rajada impetuosa arrebatou-lhe o barco, de Alarcão, até dar com ele em Vila Garcia, na Galiza, depois de ter vencido muitas curvas da morte no caminho da sua atribulada peregrinação. Os da lancha sinistrada morreram afogados no mar; o mestre Praga morreu, daí a dias, em sua casa, afogado no desgosto de não lhes ter podido valer.
De terra viam-se, às vezes, nos curtos parêntesis da borraceira que empoeirava o ar, esgueirar-se, aqui um barco, submergir-se outro, ali talvez o mesmo por entre os rodilhões das vagas, num repelão de ressaca.
Desgrenhadas, em correrias desvairadas, gritando a sua dor, sem limites nem reservas, despedaçando-se contra o chão, até fazerem sangue nos seus corpos, viam-se as mulheres da pescaria por toda a praia, sofrendo a angústia dos seus parentes na própria alma crucificada. Quebravam os corações contra o Céu a implorar misericórdia: “- Chagas abertas do Senhor, valei-lhes! Jesus, Maria, José vos acompanhem!”
As vagas revoltas, avançavam para a capela de S. José de Ribamar - algumas às punhadas contra as paredes exteriores, para que ouvissem bem lá dentro, as chamadas de socorro e de joelhos, mãos erguidas, como de náufragos num oceano de agonia, suplicavam em altos brados: “- Ó S. José, ponde-vos ao leme!”
Sem se saber como, jogado pelas ondas, por cima da penedia, deu à praia, com todos os tripulantes são e salvos, um barco de Matosinhos. A multidão acolheu-os e agasalhou-os.
Dias depois, quando se andava a levantar os cadáveres que a língua da maré lançava à costa, eles foram vistos na sua terra (já as famílias não contavam com eles), levando aos ombros os restos da vela que escapara do naufrágio, a caminho da igreja do Senhor de Matosinhos, onde iam cumprir um voto que haviam feito no alto mar.
Os poveiros também andaram muito tempo nessas piedosas romagens; e, a datar de então, deixaram de usar os tradicionais trajos garridos, domingueiros, singularmente característicos da sua grei: calça e vestia brancas, percinta da mesma cor, listrada de azul, e comprido catalão vermelho. Em seu lugar, passaram a usar fatos escuros, da cor do luto do ´27 de Fevereiro´.»
CAETANO VASQUES CALAFATE – 1890-1963, Licenciado em Letras, professor do ensino liceal, publicista de mérito, orador fluente, jornalista e homem de letras. Intransigente defensor dos pescadores poveiros, conduziu uma longa cruzada jornalística a nível nacional em prol da construção do porto de abrigo local. Foi o criador da “Casa dos Pescadores” da Póvoa de Varzim, a primeira que existiu no País e que serviu de modelo às restantes. Tem, junto ao mar, um monumento com o seu nome (estátua em tamanho natural ), erigido pela gratidão dos pescadores, seus conterrâneos.”