Segunda-feira, 17 de Setembro de 2012
A génese da lancha poveira do alto “Fé Em Deus”.
 

«A lancha poveira do alto é um barco de boca aberta, de quilha, roda de proa e cadaste. Arma uma grande vela de pendão de amurar à proa. Como não dispõe de patilhão, um leme alteado assegura essa função.

A “Fé em Deus” foi reconstruída segundo normas e modelos tradicionais locais e representa uma das últimas lanchas poveiras a ir ao mar na década de cinquenta do século passado.

“O início da construção deu-se a 27 de Fevereiro de 1991, com o levantamento da quilha no picadeiro e o bota abaixo, a 15 de Setembro do mesmo ano”, recorda João Feiteira, construtor da Lancha Poveira. E acrescenta: “embora o Alberto Marta e o Silva Pereira se tivessem envolvido no projecto, Manuel Lopes foi grande mentor e impulsionador da construção da construção da embarcação”.

João Feiteira nasceu na Póvoa de Varzim em 1925. Ainda criança começou a trabalhar no estaleiro na rua da Caverneira. Aos 18 anos de idade partiu para Moçambique, onde aprendeu todas as artes de construção naval: “cheguei a operário de primeira categoria a trabalhar nas lanchas.

Em Lourenço Marques fui funcionário da Marinha e regressei com a descolonização, em 1976. O Silva Pereira foi quem me deu guarida no Clube Naval, onde continuei a minha actividade de construtor naval. Mais tarde um, companheiro das Caxinas, hoje presidente da Junta de Freguesia de Vila do Conde, sugeriu-me uma sociedade e compramos um estaleiro e criamos o Postiga e Feiteira”.

 

 

Os primeiros passos para a construção da lancha poveira foram feitos de conversas com Manuel Lopes: “disse-lhe que tinha o desenho guardado na cabeça. Trabalhei em muitas lanchas e sabia fazer o trabalho de acordo com as características exigidas. Só era preciso definir as formas. Foi só passar da cabeça para o papel. Havia lanchas maiores, mas a Fé em Deus tem mais de 12 metros”.

Seis meses foram o tempo suficiente para fazer renascer a lancha poveira do alto. “Primeiro escolheu-se as madeiras, grande parte da lancha é pinho bravo. No projecto de uma embarcação definia-se logo a linha de água. Depois o cavername (esqueleto da lancha), a roda de proa, a quilha e o cadaste. A roda de proa é uma peça que faz curva. O pinheiro para abate era escolhido com aquela curva, e o cadaste é à ré onde tem as ferragens do leme e um compartimento para o mestre dormir. Os camaradas dormiam nas panas, no corpo da lancha. A quilha é feita de sobreiro, porque é uma madeira que em fricção com os paus de varar, que eram de pinheiro, fica polida e escorrega. Punha-se um bocado de sebo na quilha para ao varar deslizar melhor. Varava-se as lanchas para a areia, onde ficavam no tempo do defeso”. E conclui: “a lancha poveira para navegar bem e com velocidade tinha umas finuras muito delicadas. Dizia-se que tinha de ficar desempolada. O pescador gostava de ver a lancha a andar bem mas com segurança. As formas tinham de ser idealizadas de acordo com esses critérios. Creio que atingimos esse objectivo na Fé em Deus”.

 

 

Durante a construção da lancha poveira, João Feiteira recebeu várias visitas de Manuel Lopes. “Acompanhou sempre a construção e não queria que colocasse qualquer peça nem a fechasse sem que ele a fotografasse”.

A altura dos mastros tinha uma norma que por vezes era viciada pelos pescadores. “Fui muitas vezes à bouça escolher o pinheiro para o mastro, nem muito grosso nem muito fino, e com poucos nós para não partir. Era preciso meia dúzia de homens para pegar nele. Os mastros são sempre feitos de pinheiro porque o eucalipto é muito pesado. A verga é mais fina e tem mais uns metros. Por norma, o mastro vai desde a carlinga, de cima das galeotas passa o cadaste e sai fora da popa um bocadinho, já com o leme no lugar. Por vezes os mestres punham um mastro maior para aproveitar mais o vento. Havia uma rivalidade sadia”.

A dimensão da vela tem a ver com o tamanho do barco e do mastro: “dizia-se o pano e não a vela. O pano era talhado pelos pescadores. O Sarrão, que morava ao pé dos Correios, fazia os melhores panos”.

Na hora do bota-abaixo, João Feiteira diz nunca ter tido dúvidas: “eu sabia que tudo iria correr bem. A minha cabeça não me enganou no desenho. Senti uma grande emoção porque estava a reviver um passado distante, saído das minhas mãos, regressado das minhas memórias”.»

 

por José Peixoto - A Voz da Póvoa, 18 Julho 2012.

fotos 1 e 3 – José Peixoto.



publicado por cachinare às 00:20
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2 comentários:
De Anónimo a 17 de Setembro de 2012 às 17:47
Quando aqui se referem, e não é a primeira vez que tal acontece, ao início da construção, da réplica da lancha Fé em Deus, julgo estarem a fazer uma certa confusão. É que na verdade, a construção não se inicia «com o levantamento da quilha no picadeiro», já que esta tinha sido antes construída . . .
Anteriormente, para além do seu estudo, houve que ir à bouça, riscar, cortar e aparelhar cavernas, roda de proa, cadaste, etc. etc.
Ora, estas últimas fases, assisti eu, pessoalmente, ali
nos Estaleiros Navais de Postiga e Feteira, Lda., então sitos no Cais das Lavandeiras, em Vila do Conde (mesmo frente à Adega Gavina), onde o cavername era empilhado conforme ia sendo construído.
Construídas que foram todas essas estruturas, então sim, houve que transportar todo esse material para o areal da Póvoa, onde, com oportuna pompa e circunstância,
os carpinteiros navais, liderados pelos mestres Postiga e Feteira, sempre sobre a atenta supervisão do saudoso Manuel Lopes, procederam à montagem destas estruturas e acabamento.
Prazer ainda, tive ao participar no seu lançamento à água, bem como na navegação de Vigo à Póvoa, a convite de Manuel Lopes, já então bastante adoentado.

Albino Gomes


De jaime piao a 27 de Setembro de 2012 às 10:46
Bom dia ,é sempre bom ver nem que seja em foto alguém que merece um sincero abraço ,e o Sr. Joao Feiteira é bem merecedor de um abraço ,porque na minha ótica foi sempre um exemplar homem amigo dos amigos ,e com respeito a replica da lancha Fé Em Deus ,acho que foi muito bem conseguida ,isto só mostra a diferença entre as gentes da Povoa com Vila do Conde mas em tudo ,enquanto uns sempre homenageiam os seus antes ,outros nem se lembram que existiram outros barcos de pesca artesanal outros pescadores de outros tempos ,que foram autênticos heróis na pesca do bacalhau e, foram aos milhares...os melhores mestres e pescadores da sardinha eram de Vila do Conde ou seja Caxineiros ,mas como se diz em gíria ,dos fracos não reza a História !!!


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