Terça-feira, 25 de Setembro de 2007
Nós e Eles, na Gronelândia.
Pode parecer elementar, mas houve muito pescador que ao passar por Eles, nunca se apercebeu do que estava por baixo, naquele abismo gelado. A visão é aterradora e os cuidados durante as campanhas aos mares gelados, entre muitos outros, tinham que ver com a constante vigia dos gelos à deriva e os monumentais icebergs.
À maneira de tantos outros Portugueses que no passado foram por esse mar fora em busca do que existe mais além em tantas epopeias, também estes Portugueses no início dos anos 30 aventuraram-se “...por águas desconhecidas e muito frias, que eram olhadas com desconfiança e um certo temor.” Alguma semelhança com uma qualquer epopeia dos Descobrimentos, não será mera coincidência.
Toda a gente conhece o “cliché” Titanic vs. Iceberg, mas quantos em Portugal sabem que andamos nós de volta deles durante décadas e décadas e que tantos lá pereceram, navios e homens?
 
O registo seguinte foi escrito pelo Dr. Amadeu Cachim, Presidente da Câmara Municipal de Ílhavo, (que transcrevo de http://blogdobarco.blogspot.com com o devido respeito) e descreve a história dos inícios da pesca mais a Norte do que era costume, nas costas da Gronelândia, pois na Terra Nova o bacalhau escasseava e em Portugal a crise aumentava...:
---------------A Primeira Viagem---------------- “Há já muitos anos e muitos anos, que, na época própria, airosos veleiros portugueses atravessavam o Atlântico, a fim de, nos bancos da Terra Nova, praticarem a pesca à linha. Mas o peixe começou a escassear naquelas paragens, e era necessário procurar outros bancos, onde houvesse abundância de bacalhau, para que os carregamentos dos lugres pudessem compensar as enormes despesas feitas pelos armadores. Quase todas as empresas se encontravam arruinadas a esta indústria, com mais dois ou três anos maus, terminaria toda a actividade. Nestes apuros, em 1930, um homem de Ílhavo, Capitão do Lugre Santa Mafalda, tentou demandar aos mares da Gronelândia, onde se dizia haver muito bacalhau. Mas, por que se não tinha munido de todas as cartas daquela região, regressou à Terra Nova, depois de haver sofrido as inclemências do frio, nos mares gelados do estreito de Davies. Estava , no entanto, lançada a ideia. No ano seguinte, quatro navios “Santa Joana”, Santa Mafalda”, “Santa Isabel” e “Santa Luzia”, comandados respectivamente pelos Capitães João Ventura da Cruz, João Pereira Cajeira, Manuel dos Santos Labrincha, e Aquiles Gonçalves Bilelo, todos de Ílhavo, depois de permanecerem nos bancos da Terra Nova, durante cerca de um mês, rumaram aos mares da Gronelândia, onde encontraram grande fartura de bacalhau. - Alta madrugada, estrelas ainda no céu, os da “ companha” são acordados por uma voz rouca e forte que, da boca do rancho, exclama: seja Louvado e Adorado Nosso Senhor Jesus Cristo; são quatro horas, vamos arriar. Ainda estremunhados, os pescadores saltam dos boliches e enfiam a roupa de oleado e as botas de água. Engolido à pressa o café, sobem a correr para o convés. Então os dóris, munidos do estrafego, da agulha de marear e da isca, são imediatamente arriados pelos teques e afastam-se do navio. A remos ou à vela, lá vão eles para o lejo, à procura de um bom espalco, onde a trabalhosa e enervante faina possa ser compensadora. Mas, como nos dias anteriores o bacalhau não aparece… .
 
À tardinha, depois de muita procura, todos regressam ao lugre, uns quase vazios e outros com peixe à sarreta. A bordo é uma tristeza! Já passou um mês e ainda não se pescaram trezentos quintais. De noite, naquela longa noite, em que nada se ouvia a não ser os gemidos monótonos produzidos pela oscilação lenta do navio e o tic-tac do relógio de cobre, pendurado na antepara, por baixo do alboi, o Capitão não dormia. Primeiramente, sentado na loca da Câmara, que um candeeiro de suspensão iluminava, com a sua luz amarelada e vacilante, falara com o piloto e com o contramestre; mas agora no seu camarote, muito sozinho, não conciliava o sono. Pensava, pensava sempre. Aos louvados, já ele estava no convés, sem ter pregado olho. Reuniu então toda a companha: - Rapazes: aqui não fazemos nada. É uma desgraça para nós e para os patrões! Dizem que lá no Norte, na Gronelândia, há muita fartura de peixe. Quereis ir até lá? Os pescadores, receosos, entreolharam-se e nada disseram. Mas, passado aquele momento de indecisão, um dos mais velhos quebrou o silêncio: o senhor Capitão tem mulher e filhos, como nós. Leve-nos, portanto, para onde quiser, pois temos a certeza de que vamos para bem. Leve-nos para qualquer sítio, onde haja bacalhau, porque foi para o pescar que deixámos, lá longe e com tantas saudades, as nossa terras e as nossa famílias. Surgiu então no Diário de bordo, que tenho na minha frente, a seguinte passagem: «Aos dois dias do mês de Julho de 1931, estando o lugre “Santa Joana” ancorado no Virgin Rocks, a E do Main Ledg, como não houvesse peixe suficiente para o carregamento do navio, resolveu o Capitão suspender a amarra e seguir viagem para os bancos da Gronelândia.
Pelas 18,30 horas, começou-se a virar a amarra e, pelas 19 horas, fizemo-nos de vela ao rumo NE 4N, com vento W e todo o pano largo. Juntos, na Virgin Rocks, estavam os seguintes lugres portugueses: Santa Isabel, Hortense e Cruz de Malta. Navegámos com vento W regular e nevoeiro cerrado, não se vendo os navios, quando partimos». A viagem, que demorou treze dias, foi toda feita com tempo irregular. Algumas vezes havia vento muito fresco, aguaceiros de neve e mar bastante agitado; noutras ocasiões, apenas se fazia sentir uma leve aragem, que mal fazia deslocar o navio, ficando este quase desgovernado, quando, pela tardinha, o vento acalmava por completo. Assim se foi singrando, pouco a pouco, por águas desconhecidas e muito frias, que eram olhadas com desconfiança e um certo temor. No dia 15, porém, pelas sete horas da manhã, passou à fala um vapor inglês, cujo comandante, depois de haver mandado parar as máquinas, forneceu algumas informações, muito úteis, a respeito dos mares da Gronelândia e sobre as condições de pesca nos seus bancos, chegando mesmo a oferecer algumas cartas daquela região. Os tripulantes do «Santa Joana», até aí tão receosos e cépticos, sentem que uma grande alegria lhes invade os corações. Mas, pela tarde desse mesmo dia, são avistados quatro enormes ilhas de gelo, que, novamente, a todos causam grandes preocupações. No entanto, a viagem prossegue, com a máxima cautela, sempre com vigias atentos, a prescrutar o horizonte, para que o navio se possa desviar de qualquer icebergue ou se não enfie para dentro de alguma zona gelada e, no dia seguinte, pelas 10 horas, segundo reza o «Diário» avista-se terra – a ilha da Gronelândia – toda coberta de gelo. «Pelas 18 horas, sondámos em trinta braças, continuando a navegar, com tempo muito bom e claro. Navegámos com vento bonançoso e terra à vista, ao rumo NE 4N, até que, pelas três horas, como houvesse calma e muito bacalhau à borda, ancorámos na posição de lat. 63.40 N e long. 53.00 W – Banco Fillas – com 50 braças de arame de 30 de correntes». O «Santa Joana» manteve-se neste «BANCO» cerca de 21 dias, sempre com bom tempo e fazendo pescas abundantes.
 
Durante este período, a tripulação admirou-se bastante, não apenas com o facto de ser sempre de dia, chegando mesmo a ver-se Sol à meia noite, nos fins de Julho, mas também com os lindíssimos e variados aspectos que lhe oferecia a enorme quantidade de gelo, que, em grandes blocos, se estendia junto à costa e ainda com a extraordinária porção de aves marinhas – cagarras, paínhos e pombaletes – cujos enormes bandos, ora pareciam nuvens no céu, ora cobriam o mar, onde se deixavam apanhar com facilidade. Também lhes causou certo espanto o extraordinário número de barcos a motor – palhabotes de dois e três mastros – pertencentes a países nórdicos e ainda os muitos e grandes veleiros franceses – lugres e patachos – pescando ao troley, que sulcavam aqueles mares, tão calmos, frios e brilhantes. O Capitão dum desses «Trolers» deu a informação de que não havia ventos contra a praia, pois que os rumos predominantes eram o sudoeste e o nordeste. Nestas circunstâncias, pôde o «Santa Joana» aproximar-se da costa, que era muito feia, alta e escarpada, e pescar aí grandes quantidades de bacalhau. Foi nesta altura que muitos esquimós (o termo actual será “Inuit”), ainda jovens, e vestidos com os seus trajes muito característicos, visitaram o navio, trocando peles de foca, de arminho, de urso e de raposa branca por café, chá e aguardente. Estes jovens – rapazes e raparigas – que, com muita arte e ligeireza, se dedicavam também à faina da pesca, eram tripulantes dumas pequenas lanchas que, todos os dias, saiam dos estreitos e perigosos portos da Gronelândia. Apesar de tudo, no dia 5 de Agosto, como o peixe começasse a escassear, resolveu o Capitão procurar outro pesqueiro, mais ao norte, onde, em menos tempo, pudesse completar o carregamento. «Aos seis dias do mês de Agosto de mil novecentos e trinta e um, pelas seis horas, começamos a suspender a amarra e, pelas sete horas, fizemo-nos à vela, com todo o pano largo, ao rumo NNE com vento SW e tempo de chuva e nevoeiro. No dia sete pelas três horas, ancorou o navio no banco «Lille Hellefisk» na seguinte posição: lat. 65.00 N e long. 53.30 W». Arriados os dóris, em pouco tempo estes regressaram ao lugre, completamente carregados e, num abrir e fechar de olhos, todo o convés ficou inundado de peixe. Sob o vigilante e atento olhar do capitão, começa, imediatamente, o árduo e exaustivo trabalho da escala e da salga, que se prolonga por muitas horas. O esforço que os homens despendem não tem limites, mas a disposição é boa, porque compreendem que uma nova era de prosperidade se vai abrir para a arrojada e, até ali, tão desprotegida classe dos pescadores bacalhoeiros.
 
E a campanha prolonga-se até ao dia seis de Setembro, sempre com os mesmos perigos, os mesmos trabalhos, as mesmas saudades. Todavia, no dia seguinte, quando todas as panas estão atulhadas e no porão não cabe mais nada, quando já não há outro sitio onde salgar bacalhau, quando o convés está debaixo de água e o navio não tem posse para mais carga, o Capitão, depois de tudo bem acautelado – as escotilhas devidamente cobertas e pregadas e os botes piados com segurança – manda içar, bem a tope, no mastro da mezena, a bandeira nacional e escreve no «Diário de Bordo»: «Aos sete dias do mês de Setembro de mil novecentos e trinta e um, estando o lugre português «Santa Joana» ancorado no banco Lille Hellefisk, por ter completado o seu carregamento de bacalhau, foi dada por finda a campanha de pesca». Pelas seis horas o Capitão mandou virar a amarra, para seguir viagem para Portugal, com destino a Aveiro. Pelas sete horas fizemo-nos de vela, com todo o pano largo, ao rumo SE41/2S. «Deus nos leve a salvamento». Quando, nos princípios de Outubro, os quatro lugres, que pescaram nos bancos da Gronelândia, chegaram a Portugal e demandaram os seus portos de armamento, ouve grande alvoroço e muito regozijo entre as classes ligadas às actividades piscatórias. É que, de todos os veleiros que, nesse ano de 1931, foram à pesca do bacalhau, apenas aqueles quatro conseguiram carregamentos completos.
Em face destes resultados tão auspiciosos, imediatamente os restantes armadores resolveram mandar preparar os seus navios, para que a próxima campanha fosse exercida nos mares da Gronelândia. Daí em diante, os carregamentos foram sempre mais ou menos compensadores, o que fez com que esta indústria – agora também orientada e grandemente auxiliada pelo Grémio dos Armadores – se tornasse maior, mais rica e mas progressiva. É bom pois, que não sejam esquecidos aqueles quatro arrojados Capitães e suas destemidas tripulações, bem como os armadores dos referidos navios, particularmente o gerente da empresa de pesca de Aveiro, senhor Egas da Silva Salgueiro que, com a sua grande visão e iniciativa, muito contribuiu para o incremento e prosperidade da Indústria Bacalhoeira.


publicado por cachinare às 11:42
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