Sexta-feira, 13 de Janeiro de 2023
A Frota Branca e A Iconografia do Poder - 1.

«Devido a dificuldades de tempo e distância relacionadas com a gestão das pescas longínquas, era difícil ao Estado Novo manter total controlo sobre os homens da frota portuguesa. Os navios de pesca moviam-se de umas área de pesca para outras e tinham contactos frequentes com pessoas de outras nações nos portos canadianos, onde pescadores e oficiais experimentavam um estilo de vida menos rígido e mais democrático – um desafio aos sistemas de controlo do Estado Novo.

De modo a solidificar uma inabalável ligação a Deus, Pátria e Família, o novo (navio-hospital) “Gil Eannes” incorporava símbolos destes conceitos nos seus motivos decorativos. O estado comissionou o artista açoriano Domingos Rebelo para pintar duas obras no navio: uma para adornar uma grande parede nos aposentos do comandante e outra para avivar o altar da pequena capela no convés. Em concordância com o uso por parte do Estado Novo, de símbolos morais para justificar arranjos institucionais do seu sistema político “grupos criativos (como os artistas)... definem e promulgam imagens oficiais do mundo e do que nele se passa, definições oficiais da situação” (Gerth and Mills, 1953: 212-13)
Os aposentos do comandante exibiam a colorida tela de Rebelo. Com um enquadramento narrativo de uma obra patrocinada pelo estado, o artista reconstrói visualmente a história épica da vida do pescador-de-dóri de modo a suprimir outras versões dessa mesma vida, que era bem conhecida pela sua dureza, sacríficio, privação e abuso físico e psicológico. A maioria dos que olhavam para a obra, provavelmente não analizavam a sua estrutura, estilo, ou conteúdo, mas sim reagiam aos símbolos nela interiorizados. Domingos Rebelo, contudo, guia quem olha através das três cenas narrativas que rodeiam o pescador. Por exemplo, se olharmos para o pescador em grande plano, de imediato nos fixamos na sua face. Ficamos presos à tela com o remo que segura nas mãos. Depois, o movimento circular dos seus braços ergue-nos o olhar para o topo do remo e daí para a esquerda, permitindo-nos ver a sua vida famíliar em Portugal. O berço no fundo à esquerda, guia-nos depois para o rapaz e o seu mentor até ao icebergue por trás do pescador no horizonte. De novo direccionados pelo remo, da esquerda para a direita somos levados para a outra cena em Portugal, onde todos os pescadores, no activo ou reformados, recebem apoio. Através da integração na tela de diferentes espaços artísticos e lugares geográficos, o artista apresenta a vida, idealizada por imagens de memória, de um típico pescador-de-dóri dos Grandes Bancos.
Ao considerar as imagens, perguntamo-nos quem é este aprumado e sem emoção homem que enverga a típica camisa de flanela aos quadrados, e nos olha directo e fixamente? A mensagem é clara. Este é um pescador anónimo – o estereotipo do bom, humilde, obediente, estável pescador. Ele é pai e marido. Ele é todos os pescadores nos quais assenta a responsabilidade do bem da Pátria e Família. Ele é o fiável “Zé Pescador”, a figura central numa missão nacional.
O papel paternalista do Estado Novo na vida da família do pescador durante a sua ausência de seis a sete meses, pode ser notada à esquerda, onde vemos edifícios representativos da saúde, educação e programas sociais administrados pelo Estado Novo, através da Junta Central de Casas dos Pescadores. Proeminente em grande plano está o filho – o futuro pescador – recebendo instrução na escola de pesca e navegação. Com o seu tutor, estuda um modelo de veleiro. Além do rapaz encontra-se uma rapariga que aprende a coser de modo a preencher a sua posição no Estado Novo como mãe e dona-de-casa. Maternidade e famíia claramente dominam esta cena, com uma mãe expectante a segurar o seu bebé e outro infante no berço. O Estado Novo tinha grande orgulho nos seus programas que promoviam a nutrição, higiene e serviços de saúde, simbolizados pelo grande edíficio. Outros programas sociais incluiam centros de dia e a construção de novas casas para os pescadores e suas famílias, como se pode notar em fundo.
A cena à direita, de novo mostra o braço protector do Estado Novo que cuida do pescador activo quando se encontra em casa, ou do pescador reformado. O Estado Novo, pela mão de ferro do Comandante Henrique Tenreiro, representante do governo no Grémio, supervisionou muitos programas que providenciavam cuidados e serviços: transporte (a Volkswagen) equipamento (roupas de oleado) saúde (a mesa de operações) e casas para os reformados (à direita).
A cena no horizonte mostra três memórias evocativas da pesca do bacalhau nos Grandes Bancos: o enorme icebergue ao centro, o grande banco de nevoeiro que se aproxima pela esquerda e o famoso e adorado “Gazela” (agora em posse da cidade de Filadélfia, E.U.A.) à direita. Todos estes ícones são brancos. O artista não narra nada sobre este horizonte em detalhe. São precisamente as durezas por detrás destes ícones que estão ausentes desta obra – as realidades da vida nos Bancos.
Ao considerar esta obra e o seu grande simbolismo na posição do humilde pescador na Nação, falta colocar uma última questão. Quem via este quadro pendurado no salão dos aposentos do comandante? Os pescadores de certeza que não entravam neste espaço, mas sim oficiais de estado, dignatários em visita e capitães dos navios de pesca, que eram aqui recebidos e operavam reuniões. A visita de dignatários estrangeiros traria provavelmente com eles os seus próprios símbolos interiorizados, que seriam contrários ao regime autoritário. Também, e da maior importância, os capitães portugueses, a maioria dos quais era formada e falava inglês, estaria exposta nas suas andanças e contactos pessoais e profissionais nos portos canadianos aos contra-símbolos de um sistema político e social mais democrático. Assim, aqueles que tivessem a tentação de considerar outros sistemas de estado como mais viáveis, eram controlados pela apresentação visual nos aposentos do comandante do navio de estado. Os símbolos usados nesta obra serviam também para evocar o orgulho português no pescador-de-dóri e nas suas campanhas.»
 
Traduzido de: – Priscilla Doel  “The Iconography of Power”, a chapter in The Portuguese in Canada (University of Toronto Press)  - 2000.
 
Fundação “Gil Eannes” – Viana do Castelo.


publicado por cachinare às 13:54
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