Segunda-feira, 23 de Janeiro de 2023
A Frota Branca e A Iconografia do Poder - 2.

 

«Como que a comprovar o papel do navio-hospital “Gil Eannes” como ícone do nacionalismo português e a tela de Domingos Rebelo como o ícone dos sistemas familiares e sociais, um outro ícone da ideologia do Estado Novo a bordo do “Gil Eannes” representava a presença de Deus (omnisciente, omnipotente, omnipresente) na forma de uma capela no convés. Com as portas da capela abertas, o presente vê que este pequeno local de adoração continha uma outra obra de Rebelo que efectivamente retratava o papel central da religião (Deus) na relação entre bacalhau, o pescador-de-dóri a trabalhar nos Bancos e a família em casa em Portugal – todos unidos através da mãe de Deus.
A Virgem, de braços abertos a receber todos os que lhe prestam homenagem, é o ponto focal do arranjo triangular do espaço. À esquerda, dois pescadores-de-dóri prestam respeitos a Deus através da Virgem. Um veste a típica camisa de flanela, calças grossas e botas de borracha, envergando as roupas de mau tempo enquanto se dirige em direcção à Virgem. O outro homem, vestido com camisola grossa e avental de trabalho, ajoelha-se enquanto reza com as mãos em gesto simbólico e olhos cerrados. Aos pés do pescador de pé está a representação de um enorme bacalhau – a razão pela qual está nos Bancos e longe de família e casa. À direita, mãe e criança (esposa e filho) em Portugal rezam à Virgem pelo bem e segurança no regresso do seu marido e pai. Uma saca no chão, talvez contendo os seus trabalhos ou algumas peças de roupa, complementa o bacalhau. As cores envergadas por mãe e filho são sombrias, sugerindo um estado de meditação, enquanto as vestes dos homens nos Bancos sugerem calor e protecção contra os elementos. As cores que rodeiam a Virgem – azuis e branco – separam-na das figuras terrenhas.
Nesta obra da era do Estado Novo, vemos que os mitos idealizados a rodear a indústria bacalhoeira do pós-guerra baseavam-se em três símbolos básicos. Primeiro, o “Gil Eannes” era representativo da Pátria no mundo moderno. Segundo, a tela de Rebelo simbolizava a inter-relação entre a indústria de pesca ao bacalhau portuguesa e a Família, fundação na qual assentava o sistema de benefícios. Finalmente, a capela com a sua outra obra de Rebelo simbolizava a presença de Deus – desde sempre o ícone unificador da expansão portuguesa além-mar.
Contudo, entre o mito no qual o Estado Novo idealizava o pescador-de-dóri e a realidade da vida nos bancos, existia um grande vazio. Dentro da memória colectiva do pescador-de-dóri português, existia ainda a memória de tempos antigos de virtual escravatura; tais como os descritos por Alan Villiers numa conversa que teve com o seu camarada Pierre Berthoud em 1929, quando o seu navio (o “Grace Harwar”) cruzou uma pequena frota de escunas portuguesas que rumavam aos Bancos: “Uma vida dura, diz você?” olhava furioso o francês para mim. “Uma vida de cão, isso é que é! Meu Deus, não há vida mais dura sobre o mar! Toda a pesca é dura, mas aquela é a pior, mais dura forma de ganhar a vida que conheço. Aqueles tipos terão sorte se regressarem a casa daqui a seis meses. Sim, e alguns deles não regressarão. Dou-vos um conselho, camaradas, a vida agora está difícil por toda a Europa, mas nunca vos ponhais a bordo de um daqueles. Aqueles portugueses usam dóris de um só homem. Afastem-se deles!” (Alan Villiers 1951, cap.17).»
 
 
Num breve comentário, gostaria de abordar dois pontos desta análise de Priscilla Doel:
 
1 – quando diz que “...um outro ícone da ideologia do Estado Novo a bordo do “Gil Eannes” representava a presença de Deus (omnisciente, omnipotente, omnipresente) na forma de uma capela no convés.” – Não me parece que a capela no convés de tão importante navio como o “Gil Eannes” fosse obra da “ideologia” do Estado Novo, pois desde sempre grandes navios tiveram uma capela a bordo, fossem navios de passageiros ou transporte. Hoje em dia, os mais modernos navios incluem uma capela ou até diferentes locais de culto a bordo para as diferentes religiões dos passageiros. Além disso, os pescadores por natureza sempre foram e ainda são pessoas muito crentes, independentemente das ideologias temporais.
 
2 – A descrição do marinheiro francês em 1929 sobre a pesca do bacalhau será na sua maioria verdadeira. No entanto, ainda por alturas de 1929, a frota bacalhoeira francesa na Terra Nova e Labrador tinha o hábito de deitar borda-fora pescadores que morriam a bordo, de exaustão, maus tratos e doença.
Nunca li ou soube de algo semelhante na frota portuguesa dessa ou de outra altura. Poderei vir a descobri-lo no muito que me falta ler... ou talvez não. 21 anos mais tarde, Alan Villiers experimentaria a vida daquela frota portuguesa e o resultado é bem conhecido.
 
Traduzido de: – Priscilla Doel “The Iconography of Power”, a chapter in The Portuguese in Canada (University of Toronto Press) - 2000.
 
Foto de Rui Agostinho - SérgioCruises.
 
Fundação “Gil Eannes” – Viana do Castelo.


publicado por cachinare às 10:13
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