Quarta-feira, 10 de Julho de 2024
À pesca numa gamela, em Vila Praia de Âncora.

«Nortada, brisa desfeita, mar de barbalhão. Mar branco de espuma, as carrouqueiras erguiam- se espicaçadas pelo vento cavando o dorso do mar. A espuma branca e fervilhante da ondulação metia respeito como as barbas de S. Telmo. Mas o poente é de jeito, mascatos voando em acrobacias estonteantes penetram na água, gaivotas em alvoroço, sardinha, muita sardinha, vai o mar cheio. O jeito que vai no mar não engana.
Depressa, varas estendidas na areia, rolos em cima e a gamela a deslizar sobre eles.
- Vai, vai, para baixo todos os santos ajudam!
- Vem malhouco, agora, empurra, salta. Vamos com Deus!
Algumas remadas e o Sabugo é alcançado, espuma dispersa da raiva do vento que as ondas desfaz.

- Vamos marear! – grita o arrais. Agora, enverga, pano estendido de proa à ré, amarra os envergues à verga alongada, lestos os aparelhos. – Arvorar o mastro, ostagar. Iça, iça, retesa os caçoilos, colhe a escota, teza o socairo. O leme, o leme já está ferrado, a cana do leme enfiada na cachola.
Roupa de oleado ajustada ao corpo, sueste a cobrir a cabeça salpicada de vento e de mar, alerta constante, vai a bolinar.
Força gamelinha, o jeito vai a noroeste pelo Lago, a Parede, os Carvalhinhos.
Ah! Mar de Deus, a surreada é de proa à ré, a gamela adorna por bombordo, a água entra pela borda metida. A vela latina é grande e perigosa, exige muita perícia e experiência nestas condições de nortada forte e mar encrespado, mas aguenta-se.
- Rapaz, escoa a água!
E o rapaz, iniciado, agarra-se a bombordo tiritando de frio e de medo, empunha a cunha (bartedouro) e zás, zás, pressuroso escoa a água .
- Para estibordo! - grita o arrais - depressa rapaz, vai adornar .
A vela quase toca na água, a gamela quase se volta, o rapaz encheu os canecos, aturdido pelo rugido do mar e os gritos do arrais, indefeso e molhado como uma sopa. Na boca o sabor amargo do sal e da vida que abraçou.
Manobra para arribar, proa à linha de vento. A água é muita a bordo: - Escoa, escoa . Ufa, que susto!
Agora, de novo à bolina, mais uma bordada a nordeste e outra mais a noroeste. - Virar, virar! - Ah! gamelinha, vela latina em barco masseira, estrutura românica , testeiro de proa, testeiro de ré, grande leme para compensar o fundo chato.
- É melhor rizar, tio Rifeiro.
- Não - responde - não vamos rizar, a gamela aguenta, nós aguentamos, podeis confiar, asseguro-vos. Logo o sol cai na água, temos de chegar depressa aonde vai o jeito.
- Então, que a Senhora da Bonança nos ajude.
É o último bordo, emposta a noroeste, mais surreada forte, verga a gemer contra o mastro firme, o vento a rugir nas adriças, pano cheio, proa ao mar.
- Vamos arrear! Aproa, colhe a escota, enrola o pano.

Mastro e verga descansam agora sobre a forqueta. O leme repousa sobre o testeiro e o banco de ré. O rapaz estava extenuado. Que bem sabia bater uma sorna ali debaixo do leme, abrigado. Mas o trabalho vai continuar.
- Vamos largar com Deus.
E as peças - as redes da sardinha - saem pela polé, à proa, boiréu, após boiréu, sineiras retesadas. Então, o sol baixinho, despede- se e o dia fenece. A nortada amaina, adormece com o sol perdido no desmaio do horizonte.
O assejo é breve, já há boireis mergulhados na água puxados com o peso suplementar das redes. A sardinha está nas malhas como o cabelo.
- Vamos alar!
As redes são agora um grosso rolo a entrar para bordo puxadas por braços renovados de força e entusiasmo. Chegam carregadas de sardinha, vivinha, brilhante como a prata, agitada e aflita. Enche-se a pana, a gamela tem a proa afocinhada até à matrícula.
- Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo! Para hoje já está e para amanhã Deus dará.

Agora a remos para o Portinho. Não há vento para a vela.
O silêncio da noite é cortado pelo esforço dos remos, o ruído peculiar do impacto das pás contra a água, das orelheiras enfiadas nos toletes e do arfar dos remadores. A proa chata corta o mar com dificuldade e, com o peso, amorrinha mais ao impulso e cadência das remadas. A luz mortiça do cigarro denuncia o fumador inveterado.
Horas a remar: - oh! S. Bento dai vento - mas só um gracejo a animar responde: - Ai , Alentejo da minha alma, arma os remos que está calma.
Depois, o cheiro quente dos pinheiros trazido pelo balbuciar duma suave e fugaz aragem de leste. É o bafo da terra que respira muito próxima.
Faróis enfiados , Portinho adentro. - Encosta, encosta, vamos varar.
- Não, encosta só que a maré está a baixar e, logo, a gamela fica encalhada no lugar da venda e do escochamento da sardinha .
Ali, sobre a areia deixada pela maré em seco, descansa agora a gamela, como um guerreiro no fim da batalha.
O clarão da alva ergue-se, diáfano, imaculado e já corre o pregão da Maria da Júlia a cortar o silêncio das ruas estreitas e desertas, ainda submersas na quietude matinal.
- Ó pu***… levantai-vos da cama que os vossos homes já chegaram. É uma praia de sardinha, vivinha como a prata, graças a Deus!
E logo o bulício característico, o cheiro, as imprecações à mistura com devoções, o Guarda Fiscal que é gatuno e impõe um dízimo pesado que entrega ao roleiro indignado, aquela peixeira que quer mais seis mãos (um quarteirão de sardinhas) sobre meio cento alegadamente por lhe terem faltado sardinhas na venda do dia anterior: - ai a ladra! - Mas, depois, tudo bem após uma corrida de “vai- te f****…, vai trabalhar”, em tom muito jocoso .
Ah! E o pobre que pede encostado à proa do lado de fora, olhar faminto e guloso. Sim, dar ao pobre para comer , que quando Deus dá, dá para todos.
As sardinhas que estão no foquim são para a caldeirada. E que não esqueça o quinhão da Santa.
Que grande semana! Dá para comprar camisola e calças novas, pôr uma mesa de rico, beber uns copos e divertir-se. É a festa da Senhora da Bonança, as bandas de música, a feira de atracções, a capela iluminada, tão bonita, os foguetes a estoirar no ar, o fogo preso e de artifício, os bailaricos, o arraial, a procissão junto ao Portinho. Enfim, enxugadas as lágrimas por um momento, para a comunidade se vestir de festa e devoção.
Amanhã, as nossas gamelas - os nossos barcos galegos - continuarão de proa ao mar.»

 
Por Celestino Ribeiro – in blog Voz Ancorense.
 
Com a devida permissão do autor, transcrevo todo este conto, pois é por demasiado familiar à minha infância na Póvoa de Varzim, não tanto a parte da pesca, pois nunca lá andei, mas a parte da venda, com as conversas e os diálogos bem condimentados por entre o mulherio.
Descreve muito bem o universo do pescador e do miúdo que começa a aprender as artes do mar e da faina. Mostra também que na vida incerta do pescador, hoje passa fome, mas amanhã virá a fartura.


publicado por cachinare às 17:00
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