Sexta-feira, 6 de Dezembro de 2024
A tempestade perfeita.

 

«José Pequeno, 53 anos, fez a primeira viagem para a Terra Nova em 1979, com 23 anos, numa altura em que o bacalhau começava a escassear e a mão-de-obra também. Até ao fim da Guerra Colonial, eram ainda muitos os que aproveitavam a legislação que permitia escapar à luta em África, substituindo o calor das savanas pelo frio da Terra Nova. Em 1979, porém, já não havia colónias para defender ou evitar. Substituíam-se os barcos de arrasto lateral pelos de arrasto de popa. "A pesca à linha estava a desaparecer", confirma Pequeno. Os barcos de madeira também. E o bacalhau que chegava à mesa dos portugueses vinha cada vez mais dos mares da Noruega.

A frota começava a ser reconvertida para outras espécies, o redfish e a palmeta, passando a congelar-se o peixe, em vez de o salgar. O baptismo do capitão Pequeno nos mares gelados do Canadá foi, de resto, para pescar redfish. A campanha durou dois meses. Nada a ver com a pesca de antigamente, pois. Mas foi, ainda assim, "muito marcante", assegura.

A viagem no Nossa Senhora da Vitória estava a parecer fácil, mas o regresso foi atribulado. Perto dos Açores, José Pequeno percebeu, enfim, o que era o mau tempo no mar. "O navio fez de submarino, esteve debaixo de água por causa do peso." E a tripulação, de nazarenos e poveiros, rendeu-se à fé. "Vi homens de barba rija ajoelhados a rezar", conta.

Em 1982, o capitão deixou o Santa Joana a arder na Terra Nova, perto do cabo Flemish, depois de um incêndio ter atingido a casa das máquinas. "Estivemos quatro horas nas balsas, à espera que chegasse ajuda. Dois moços estavam quase em hipotermia quando chegaram o Santa Cristina e o Senhora dos Mareantes. Estava 1 ou 2 graus, mas, com o vento, aquilo torna-se agreste."

Também em 1982, o capitão José Pequeno esteve perto do olho da tempestade perfeita que inspirou o filme The Perfect Storm, com George Clooney, Mark Wahlberg e Diane Lane. "Fomos para sul, para fugir, mas ainda apanhámos uma pequena amostra."

Noutra ocasião, o Nossa Senhora da Vitória esteve uma semana sob mau tempo, uma vaga partiu os vidros todos e arrancou uma balsa, e o barco, sem força para resistir, foi arrastado pelas correntes quase até aos EUA. "Demorámos oito dias para regressar ao pesqueiro e, pelo caminho, encontrámos a balsa que tínhamos perdido", conta José Pequeno.

Entre avarias, balizas partidas, lemes e hélices danificados, temperaturas que perto do Labrador chegam aos 25 graus negativos e movimentos furtivos do gelo, o capitão garante que o mar "também tem coisas boas" e que é "entusiasmante", apesar do Natal sempre passado fora de casa, porque é preciso chegar à Terra Nova no dia 1 de Janeiro, quando começam algumas quotas de pesca. "Fazemos como se estivéssemos em família. Pára tudo às seis da tarde, até às seis da manhã do dia 25." Vão pescar bacalhau e comem bacalhau. "Somos portugueses acima de tudo. Comemos bacalhau pelo menos uma vez por semana quando estamos a bordo. Com grão, é sagrado", sorri.

Aos 53 anos, o capitão José Pequeno conta andar mais dois anos no mar. "Não auguro grande futuro para isto", diz, sublinhando as dificuldades da pesca nos mares da Terra Nova. "Há alturas em que nem se consegue abrir os olhos com o frio. Os redeiros, quando é preciso reparar as redes, só conseguem estar lá fora cinco ou dez minutos e têm de fugir para dentro. Quando se leva um pato, com uma vaga, é preciso ir logo mudar de roupa, senão aquilo congela tudo. Noutras ocasiões, as redes ficam congeladas e, para recolhê-las, é preciso ir lá com a mangueira do vapor."

Depois, diz, "também há histórias muito bonitas, em terra". "Mas essas não se podem contar. Talvez um dia, nas minhas memórias."»

 

por Jorge Marmelo – in Público - 2/1/2010

imagem: bacalhoeiro "Nossa Senhora da Vitória"



publicado por cachinare às 19:19
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