Segunda-feira, 28 de Outubro de 2024
O cheiro do sangue.

 

 

«Vitorino Paulo Ramalheira é ilhavense como São Marcos e como a maioria dos capitães da pesca do bacalhau. A Avenida Mário Sacramento, em Ílhavo, ainda é conhecida como "a avenida dos capitães", embora actualmente só lá more João São Marcos, uma espécie de patriarca dos velhos lobos do mar do Norte. "Os outros já morreram todos", diz. Os pescadores eram sobretudo poveiros, das Caxinas, ou nazarenos. "O Vitorino, para mim, foi sempre um menino", diz o capitão São Marcos. Um menino com 80 anos de idade e que chega ao Museu Marítimo de Ílhavo com um sobretudo e um boné que faz lembrar o do capitão Haddock das aventuras de Tintim, mas com o mesmo olhar vivo de São Marcos.

Vitorino Paulo Ramalheira, o capitão Vitorino, também não tem saudades do mar. "Agora só se fosse para ir ver e comer aqueles petiscos", diz. Mas dificilmente podia ser mais diferente do capitão São Marcos. Recorda os "momentos muito amargos", passados "com o coração nas mãos", os naufrágios, os contratempos e as emoções, a "vida áspera e cheia de perigos", mas também os "momentos muito agradáveis" vividos nas campanhas às águas geladas da mítica ilha canadiana.

O capitão Vitorino foi pela primeira vez à Terra Nova em 1951, como terceiro piloto do Gil Eanes, o (primeiro) navio-hospital que apoiava a frota bacalhoeira portuguesa. Para além da assistência médica propriamente dita, o antigo navio alemão - nacionalizado no fim da Primeira Guerra Mundial, levava mantimentos, combustível, sal e água doce para abastecer a frota. "Saía daqui um mês depois e levava encomendas para os barcos, batatas e isco congelado, e também dava assistência religiosa. Tinha um capelão a bordo para dizer a missa e dar apoio moral aos doentes", recorda.

Filho de pescadores, Vitorino Ramalheira foi aconselhado pelo pai a manter-se afastado da pesca do bacalhau. "Nunca gostei de pescar, mas sim de andar à procura de peixe", diz, depois de contar a estranha atracção que a pesca do bacalhau exerceu sobre ele: "Um dia, no Gil Eanes, desci a bordo de um barco onde estavam a fazer a escala do peixe. O cheiro a sangue era indescritível. Aquilo entusiasmou-me."

Em 1952 embarcou como piloto no Elisabeth porque queria casar-se e se ganhava mais no bacalhau - "E nunca mais saí." Comandou depois várias escunas, com as suas quatro velas, muito elegantes, "como gaivotas". Em 1960 tornou-se capitão do Aviz e, cinco anos depois, viu-o arder como uma tocha nos mares da Terra Nova. "Havia muitas gambiarras para se poder pescar à noite e, sendo um barco de madeira, impregnado de óleos, pouco mais havia a fazer do que deixar arder. Felizmente era Setembro, não estava muito frio, o tempo estava bom, e não se perdeu ninguém", conta.

Não havia, nesses barcos, instrumentos que ajudassem a encontrar os cardumes de bacalhau e o sucesso da campanha dependia quase exclusivamente da intuição do comandante, da sorte e de alguma estratégia. O capitão Vitorino reunia todas e demonstrou-o logo na primeira viagem: "Os barcos à nossa volta estavam a fazer 30 ou 40 quintais [1800 ou 2400 quilos], eu fiz logo 180, o que é uma pesca magnífica. Disse, no rádio, que tinha feito 120, mas um tio meu que lá andava repreendeu-me e disse-me que, assim, os outros barcos iam todos pôr-se à minha volta."

Noutra ocasião, decidiu ir mais cedo ao porto de North Sydney abastecer-se da cavala que servia de isco. Seguiu logo para a Gronelândia e já tinha pescado à farta quando os outros barcos lá chegaram. "Era uma luta terrível. A competição entre os barcos eram acérrima", conta. "Quando não encontrávamos peixe, os pescadores até nos chamavam nomes."»

 

por Jorge Marmelo – in Público - 2/1/2010

imagem: bacalhoeiro "Aviz"



publicado por cachinare às 17:28
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